segunda-feira, 28 de abril de 2014

Crônica de uma noite de abril


O frio da noite lá fora traz lembranças que se misturam com o vento que passa pela janela entreaberta e ambos fazem o pensamento viajar ao passado, deixando no ar uma sensação que lhe parecia desaparecida para sempre.
Recorda que sentia esse vento frio no rosto de frente para o mar e o ar gelado lhe proporcionava uma dor fina que ia aos poucos desaparecendo para dar lugar a um estado de paz que lhe fazia falta em outras ocasiões do dia.
Ele volta a sentir saudade dos instantes em que experimentava essa passagem da dor ao prazer e que eram tão intensos — tanto uma como o outro — que não conseguia distinguir quando havia a mudança, o que lhe provocava conflitos que demorou bastante a administrar de modo a bem usufruir desses momentos.
O silêncio contribui para que a imaginação crie asas e procure, dentre os muitos arquivos da memória, aqueles que mais deixaram marcas, sobretudo aquelas que, mesmo indeléveis, não permaneceram visíveis e o tempo se encarregou de encarcerar dentro de si.
Fecha os olhos para que as imagens se formem mais rapidamente e ocupem o espaço deixado pelo tempo de ausência e assim possa alcançá-las, criando a ilusão de poderem voltar a acontecer.
Procura recordar detalhes que deixou escapar quando essas imagens foram um tempo real — objetos quaisquer, sons que se fizeram ouvir em surdina... Mas o que ganha corpo mesmo são as impressões que lhe percorreram a pele e o simples evocá-las as traz de volta como se nunca houvessem se perdido no passado que agora retorna e se faz presente...

É como um sonho desses que nos transportam para uma dimensão diferente cheia de beleza e longe das agruras da realidade que acontece para além da janela.
E como num sonho é possível olhar para o que se foi como se estivesse ocorrendo outra vez, agora nos tendo também como espectadores além de participantes.
Apesar de estranharmos a princípio, logo se torna natural essa nossa intervenção e nos posicionamos como analisadores de nosso próprio procedimento.
Não se pensa em como ficarão as coisas quando esse instante também passar e tudo se perder no vazio da noite que tampouco permanecerá.
Tudo se faz agora, os limites que nos são impostos pela realidade desaparecem e nos encontramos livres, ainda que não saibamos o que fazer com essa liberdade inesperada e passadiça.
Percebemos que podemos voar e então o fazemos como se sempre o tivéssemos feito; e vamos pela noite adentro em busca de uma saciedade que não temos ideia de como realizá-la. Olhamos as coisas de um ângulo novo e tudo nos parece belo e bom, as pessoas que encontramos são todas elas belas e puras, não existe o mal, o mundo perde sua carga de violência e de maldade; há somente um sol brilhante, um céu azul, nuvens, flores...
A magia do sonho nos transporta por sobre tudo e nos deixamos conduzir como se soubéssemos intrinsecamente que não cairemos em quaisquer armadilhas, pois aqui não há lugar para estas.

Pouco a pouco a respiração volta ao normal, o calor começa a ocupar o espaço onde o corpo se encontra sentado à poltrona e os olhos se abrem vagarosamente para reconhecer a sala do apartamento.
A penumbra quase não é percebida, embora as imagens no pensamento ainda sejam a recordação da luminosidade que experimentava há pouco no sonho.
Ergue-se devagar e vai à janela entreaberta, conferindo a brisa leve que lhe beija a face onde algumas rugas se formam quando ali nasce um sorriso tímido.
Fecha de vez a janela e segue para o quarto. Ao amanhecer precisará estar de pé e disposto a enfrentar outra semana de trabalho árduo e entediante.
Mas percebe que o fará de modo diferente, mesmo sendo a mesma rotina de antes daquela noite, tudo tão igual aos demais dias, desde um tempo que nem recorda mais quando foi a última vez que agiu diferentemente.
Ele não sabe exatamente o motivo, mas sente que ganhou um ânimo novo para prosseguir a jornada vital. Da qual estava disposto a abrir mão ao final daquela tarde de abril — e sorri novamente, em silêncio, enquanto seus passos o conduzem à cama que o aguarda para um sono que, espera ele, o leve a um despertar sereno.

Ou não...



Abril 2014

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