segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Reflexões do (e para o) Círio


Chegado o período da festividade do Círio de Nazaré, o momento permite uma reflexão séria a respeito do que se vive nesse tempo e o proveito que dele se retira para o alcançamento dos objetivos paroquiais – em primeiro lugar – e da Igreja como um todo, especialmente no âmbito arquidiocesano.
Não devemos simplesmente considerar como normal tudo quanto acontecerá nesses quinze dias – talvez até mais – de celebrações, romarias e pregações.
Do contrário, que destino se dará aos frutos das conversões e dos compromissos que muitos assumirão diante da imagem da Santa?

Em primeiro lugar, é preciso admitir que o Círio deixou de ser um evento exclusivo da Igreja católica. Hoje em dia é um acontecimento cultural, político, econômico e ainda impulsionador do turismo receptivo na Capital paraense e circunvizinhanças.
Não somente os padres e leigos engajados são mobilizados nos preparativos para a grande festa que se dá a partir da segunda semana de outubro e se estende para depois de concluídas as homenagens à padroeira, Rainha da Amazônia.
Há um lucro enorme em tudo isso, embora nem todos ganhem.
Contudo, em razão das peculiaridades que tem a Igreja, qual o ganho que se leva do Círio? De que adiantam vir a Belém dois milhões de pessoas, participarem das romarias e depois retornarem aos seus locais de origem da mesma forma como chegaram?
Se aqui falamos de uma Igreja missionária, como tem levado adiante essa missão de evangelizar as gentes, mandamento determinado pelo próprio Cristo?

O Círio não se assemelha a uma festa de padroeiro como as demais que toda região possui. O contingente humano que visita o Santuário mariano no centro de Belém é marcado pela diversidade em quase todos os aspectos, inclusive o religioso.
Mas não podemos nos esquivar de evangelizá-los, pois também a esses irmãos e irmãs o Senhor nos envia com uma Palavra de vida eterna.
Para assumir essa missão é preciso vigilância, estar atentos a tudo e com uma disposição – sobretudo espiritual – para acolher bem os que chegam, para que possam sentir-se verdadeiramente na casa do Pai.

A dinâmica do Círio não deve nos deixar estressados, pois de nossas atitudes depende toda a evangelização.
Afinal, um cristão estressado é pior do que um pagão!
Isso somente será possível se acreditarmos que quem conduz o trabalho é Jesus Cristo, a quem emprestamos nosso corpo e nossas aptidões.
Se agirmos de modo diferente desse estaremos incorrendo em dois graves erros.
Primeiro: quem nos vir certamente concluirá que também para nós o Círio é um negócio, mesmo que não consiga descobrir o que ganhamos!
Em segundo lugar, estaremos contribuindo para um possível afastamento de muitos fiéis, que não receberam a mesma oportunidade que nós, e por isso têm menor confiança nas recompensas prometidas pelo Salvador.

Pois evangelizar exige – sobretudo em nosso tempo – criatividade e iluminação.
A primeira para não permanecer nos lugares comuns, nos chavões de uma religiosidade estereotipada e superficial.
A segunda para não criar simples modismos, como semente lançada sobre pedras.


Estaríamos prontos para viver bem este Círio?

quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Do Sermão da Montanha

Como diz o Catecismo da Igreja Católica, recuperando palavras de Santo Agostinho, o sermão da montanha pode ser considerado a “carta magna”, a “constituição” da vida cristã, numa linguagem mais acessível.
Porém, apesar da simplicidade com que Jesus o apresenta, não deixa de ser, como conclui o salmista, uma “ciência tão alta que é impossível entender”.
Ou seja, é mistério!
E, sendo mistério escondido de todos desde a eternidade, Deus o vem revelando em doses homeopáticas através da história da humanidade, de modo que a sua palavra faça da terra árida que é o coração do homem ferido pelo pecado uma terra fértil que gera frutos de vida eterna. E para a vida eterna.

Lendo atentamente o que nos chega pelos evangelistas deparamos com mandamentos e conselhos que são, verdadeiramente, impossíveis de serem observados e cumpridos por nossa humanidade pecadora.
Como almejar ser pobre num mundo onde ‘ter’ vale mais do ‘ser’? Como oferecer a outra face e não revidar à agressão? Como repartir o ‘quase nada’ que tenho? Como abrir mão dos meus interesses para ir ao encontro do outro? Pôr-me a serviço do outro, fazer-me servo – como?
A chave para interpretar essa palavra dura é-nos oferecida pelo próprio Jesus, quando, em seguimento à afirmativa de que a Lei deve ser cumprida, declara que Ele é quem a cumprirá.
Não nós, você e eu, com nossa natureza decaída, mas Ele!
E isso em função da nossa felicidade, pois Deus sabe que somos profundamente infelizes. Nossa alma é infeliz!

E a verdadeira razão de nossa infelicidade, do “vazio” que sentimos, da nossa insatisfação com tudo é decorrência do rompimento nosso com Deus. Insistindo em fazer somente a nossa vontade rejeitamos Deus, recusamos o seu amor. Mas nossa alma, que não consegue se alegrar com o ‘ter’, quer contemplar outra vez a face do Senhor, sente falta de Deus.
Como saciar, então, essa ‘sede’ de Deus, essa ‘sede’ de eternidade que trazemos em nós e que por vezes nos consome?

É importante termos consciência de que a palavra de Deus – e em especial aquela proferida por Jesus – tem a finalidade de se cumprir, de se realizar. Igual à água da chuva que, descendo dos céus, não retorna sem antes ter regado a terra conforme determinado pelo Senhor.
E onde se cumpre a palavra de Deus? Em nossa vida, na minha e na sua.

Isso significa dizer que essa mudança realizada pela palavra de Deus não nos fará mais jovens, bonitos nem mais inteligentes ou cultos segundo o mundo.
Mas, sim, nos aproximará da imagem e semelhança do Criador que é, em resumo, misericórdia e compaixão, Amor.

Contudo, para viver o sermão da montanha é necessária uma transformação profunda no espírito, o que só é possível a quem desistiu de fazer a sua própria vontade e passou a admitir que fazer a vontade de Deus é o melhor.
Esse ‘suicídio’ do egoísmo não vem da noite para o dia, nem é alcançado com mero esforço humano – é graça, presente que Deus concede aos que o buscam incessantemente; seja pela oração, mas também pelo deixar-se seduzir pelos encantos do Reino.
Ser como Jesus, ter o mesmo pensamento, as mesmas atitudes, enfrentar os mesmos desafios. Ter Cristo vivendo em nós, como o reconhece São Paulo. Ser outro Cristo, permitindo que sua palavra penetre em nós, alcançando nosso coração e guie nossas atitudes.

Porque é no coração que nasce toda vontade humana de agir, seja para o bem, seja para o mal.
Mas a verdade é que temos um coração malvado, fruto da nossa permanência no pecado, de nossa pouca oração. Do nosso rompimento com Deus e aceitação da ideia de que podemos ser felizes por nós mesmos, fazendo sempre a nossa vontade e procurando ser senhores de nossa vida.
Ainda assim somos amados por Deus, que não cessa de nos querer em seu Reino.

Mas, uma vez que não podemos habitar esse Reino com nossa natureza decaída, é preciso removê-la, transformá-la, transfigurá-la.
E como não podemos realizar tão grandiosa tarefa, por sermos incapazes de converter nossa humanidade pecadora fazendo-a semelhante à de verdadeiros filhos de Deus, é certo que precisamos de ajuda, da ajuda dos céus.

Esse é um processo bastante lento e que exige de nós algo que geralmente não temos: paciência. Porque o mundo nos tem ensinado a ser imediatistas – não toleramos esperar, queremos tudo agora.
Como essa mudança não vem como num passe de mágica, mas acontece no tempo de Deus, que é bem diferente do nosso, não raro ocorre de “atropelarmos” a história, queimarmos etapas e, como consequência, nos tornarmos ainda mais infelizes e, por isso mesmo, desanimados.

O desafio que o sermão da montanha nos lança é o de repensar nossa trajetória, observando com atenção cada momento da caminhada, pois Deus fala conosco por meio dos acontecimentos.
E, sendo assim, precisamos estar em sintonia com Ele para podermos interpretar com precisão os sinais que coloca à nossa disposição.
Somente assim conseguiremos chegar ao Reino que nos está destinado.
O “estar vigilante” consiste nisso e seguir as pegadas de Cristo só é possível quando nos deixamos conduzir pelo seu Espírito, pois não conhecemos o caminho – em verdade somos como ovelhas, que precisam do pastor a lhes indicar o rumo certo, até as pastagens verdejantes e de água cristalina e pura.

Somente assim se cumprirá em nós o sermão da montanha e, ao contemplá-lo novamente – lendo ou escutando – veremos que ele reproduz exatamente o que Cristo modelou em nós.