quarta-feira, 20 de maio de 2015

Os inominados

Em minhas “andanças” pelas Escrituras deparei-me com aquilo que hoje criei coragem para discorrer mais detidamente a respeito. São trechos dos evangelhos em que Jesus se encontra com pessoas concretas e nelas se veem verdadeiras catequeses.
São diversos esses encontros de Cristo que se podem saborear e nos conduzem a um amadurecimento na fé – Madalena, Zaqueu, Natanael, a samaritana, o cego de Jericó, a hemorroíssa, e tantos outros mais.
Entretanto, percebi que há também pessoas que são, por assim dizer, inominadas; não nos são ‘apresentadas’ e o contexto chega a ser tão explícito que as conhecemos sem delas saber o nome ou a procedência. Apenas estão lá, com suas atitudes registradas pelos evangelistas.
Isso me chamou a atenção, de modo que me permiti comentar sobre elas. Para tanto escolhi três dessas situações, que são essas:
1] - Crucificado, Jesus fica entre dois malfeitores. Um deles o evangelista diz chamar-se Dimas. E o outro, como se chama?
2] - Ressuscitado, Jesus tem sua visita aos apóstolos contestada por Tomé. Esse apóstolo é chamada também como “Dídimo”, que quer dizer “Gêmeo”. Ou seja, Tomé, o incrédulo, tem um irmão gêmeo. Como se chama esse irmão?
3] Durante o percurso de Jerusalém a Emaús Cristo aparece e inflama o coração de dois discípulos, que o reconhecem apenas ao partir o pão. Um deles o evangelista diz que se chama Cléofas. Qual o nome do outro discípulo?

Apartados das multidões que seguiam Jesus, em episódios pontuais, essas pessoas aparentemente desconhecidas são colocadas pelos evangelistas de modo que compõem a moldura de um cenário catequético e mesmo querigmático.
Partindo desses três episódios é-nos permitido pensar que se trata de uma forma de evangelização utilizada pela Igreja primitiva, a mesma que a reforma teológica iniciada com o Concílio Vaticano II tem revigorado em nossa Igreja. Os últimos papas – Paulo VI, João Paulo II, Bento XVI – e também o atual, Francisco, em muito contribuíram para resgatar esse modo de evangelizar.

Sabemos que os Evangelhos não são relatos puramente históricos da vida de Jesus. Antes, constituem um modo utilizado pela Igreja Primitiva para catequizar os que buscavam a Igreja para serem batizados e experimentar a mesma alegria que viam nos cristãos de sua época, mesmo em meio à perseguição política e religiosa de seu tempo.
E qual seria esse “método”? O de catequizar por meio de diálogos que colocam a adesão a Cristo, crucificado e ressuscitado, numa dimensão existencial, já em vista da escatologia dos últimos tempos.
Assim, o catequizando torna-se parte intrínseca do processo; a catequese o insere em cada momento registrado da presença de Cristo. Algumas vezes fazendo parte da multidão – como no sermão da montanha, na pesca milagrosa, na multiplicação dos pães, etc. Em outras, a participação é individual, como nos momentos que ressaltei.

Observando segundo esse enfoque, podemos direcionar para quem escuta a identidade da pessoa que os trechos proclamados mencionam. Assim, o “ladrão” ao lado de Jesus sou eu, é você. O irmão gêmeo de Tomé e o companheiro de Cléofas, também.
Ou seja, somos nós os que blasfemamos diante do Crucificado; somos nós ainda um dos que duvidam da ressurreição – possivelmente porque nos encontramos sepultados em nossos pecados – e também somos nós que não conseguimos identificar Cristo no outro, que caminha ao nosso lado. Somos lentos para entender o cumprimento das Escrituras – não só na vida de Jesus, que alguns de nós conhecemos até de cor, mas, sobretudo em nossa própria vida – em casa, na escola, no trabalho, na comunidade...

Jesus vai ao nosso lado e não o reconhecemos!
Outro aspecto interessante é que, antes da ressurreição esses encontros “personalizados” se dão geralmente em meio à multidão. Apenas depois da Páscoa é que ganham esse contexto particular. Ressuscitado, o Senhor se torna mais ainda “um conosco”, faz-se presente na individualidade de cada um para nos conduzir à comunhão com os outros, a nos fazer verdadeiramente Igreja-comunidade.
Penso que isso também é uma forma de centrar nosso enfoque para o principal. São Paulo e outros apóstolos garantem que o eixo do Cristianismo não se encontra no Jesus histórico, aquele que percorreu as estradas e cidades do Israel do tempo da dominação romana. Mesmo sua paixão e a morte foram “etapas” até alcançar o ponto principal e que permanece até hoje como o centro da pregação – um homem venceu a morte, foi sepultado, mas de lá saiu sem experimentar a corrupção.
Essa garantia a tiveram os apóstolos e os que creram na sua palavra, no anúncio que receberam de quem testemunhou isso tudo. E para nós isso deveria ser suficiente, se tivéssemos força de vontade para resistir aos que nos dizem o contrário.

No entanto, nos escandalizamos quando nos deparamos com o nosso próprio pecado, seja ele qual for. Em nossa ideia de justiça queremos ser perfeitos por nossas próprias forças e isso, por não vir de Deus, não o conseguimos. Queremos estar convertidos de uma vez por todas, mas a realidade, o dia a dia nos faz experimentar que isso é algo impossível, pois esbarramos sempre em nossa limitação.
Por que Deus permite que seja assim? Creio que São Paulo tem a resposta: quando escreve aos cristãos de Roma afirma que somos seres carnais e não espirituais; e que o homem da carne não pode agradar a Deus, não pode realizar as obras do Espírito.

Quando nos voltamos para as coisas do Espírito a nossa carne – nossas concupiscências – reclama, porque deseja ser saciada. Isso nos leva ao combate interior, cujo resultado fica evidente apenas a quem nos observa com atenção. São as nossas atitudes que revelam o vencedor dessa batalha que se trava lá no íntimo de nós.
Se em nós venceu o Espírito de Deus, nosso comportamento exterior revela essa condição. E também se venceu a carne!

Se, mesmo ganhando o mundo, somos tristes e acabrunhados, ‘reclamões’ e insatisfeitos, permanecemos, como os personagens mencionados ao início, inominados, dispersos na multidão, qual massa disforme, sem pertença particular a grupo algum.


É o que desejamos?

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