O frio da noite lá fora traz lembranças que se misturam com o
vento que passa pela janela entreaberta e ambos fazem o pensamento viajar ao
passado, deixando no ar uma sensação que lhe parecia desaparecida para sempre.
Recorda que sentia esse vento frio no rosto de frente para o
mar e o ar gelado lhe proporcionava uma dor fina que ia aos poucos
desaparecendo para dar lugar a um estado de paz que lhe fazia falta em outras ocasiões
do dia.
Ele volta a sentir saudade dos instantes em que experimentava essa
passagem da dor ao prazer e que eram tão intensos — tanto uma como o outro — que
não conseguia distinguir quando havia a mudança, o que lhe provocava conflitos
que demorou bastante a administrar de modo a bem usufruir desses momentos.
O silêncio contribui para que a imaginação crie asas e procure,
dentre os muitos arquivos da memória, aqueles que mais deixaram marcas,
sobretudo aquelas que, mesmo indeléveis, não permaneceram visíveis e o tempo se
encarregou de encarcerar dentro de si.
Fecha os olhos para que as imagens se formem mais rapidamente e
ocupem o espaço deixado pelo tempo de ausência e assim possa alcançá-las,
criando a ilusão de poderem voltar a acontecer.
Procura recordar detalhes que deixou escapar quando essas
imagens foram um tempo real — objetos quaisquer, sons que se fizeram ouvir em
surdina... Mas o que ganha corpo mesmo são as impressões que lhe percorreram a
pele e o simples evocá-las as traz de volta como se nunca houvessem se perdido
no passado que agora retorna e se faz presente...
É como um sonho desses que nos transportam para uma dimensão
diferente cheia de beleza e longe das agruras da realidade que acontece para
além da janela.
E como num sonho é possível olhar para o que se foi como se
estivesse ocorrendo outra vez, agora nos tendo também como espectadores além de
participantes.
Apesar de estranharmos a princípio, logo se torna natural essa
nossa intervenção e nos posicionamos como analisadores de nosso próprio procedimento.
Não se pensa em como ficarão as coisas quando esse instante
também passar e tudo se perder no vazio da noite que tampouco permanecerá.
Tudo se faz agora, os limites que nos são impostos pela
realidade desaparecem e nos encontramos livres, ainda que não saibamos o que
fazer com essa liberdade inesperada e passadiça.
Percebemos que podemos voar e então o fazemos como se sempre o
tivéssemos feito; e vamos pela noite adentro em busca de uma saciedade que não temos
ideia de como realizá-la. Olhamos as coisas de um ângulo novo e tudo nos parece
belo e bom, as pessoas que encontramos são todas elas belas e puras, não existe
o mal, o mundo perde sua carga de violência e de maldade; há somente um sol
brilhante, um céu azul, nuvens, flores...
A magia do sonho nos transporta por sobre tudo e nos deixamos
conduzir como se soubéssemos intrinsecamente que não cairemos em quaisquer
armadilhas, pois aqui não há lugar para estas.
Pouco a pouco a respiração volta ao normal, o calor começa a
ocupar o espaço onde o corpo se encontra sentado à poltrona e os olhos se abrem
vagarosamente para reconhecer a sala do apartamento.
A penumbra quase não é percebida, embora as imagens no
pensamento ainda sejam a recordação da luminosidade que experimentava há pouco
no sonho.
Ergue-se devagar e vai à janela entreaberta, conferindo a brisa
leve que lhe beija a face onde algumas rugas se formam quando ali nasce um
sorriso tímido.
Fecha de vez a janela e segue para o quarto. Ao amanhecer
precisará estar de pé e disposto a enfrentar outra semana de trabalho árduo e
entediante.
Mas percebe que o fará de modo diferente, mesmo sendo a mesma
rotina de antes daquela noite, tudo tão igual aos demais dias, desde um tempo
que nem recorda mais quando foi a última vez que agiu diferentemente.
Ele não sabe exatamente o motivo, mas sente que ganhou um ânimo
novo para prosseguir a jornada vital. Da qual estava disposto a abrir mão ao
final daquela tarde de abril — e sorri novamente, em silêncio, enquanto seus
passos o conduzem à cama que o aguarda para um sono que, espera ele, o leve a
um despertar sereno.
Ou não...